“LATE QUE EU TÔ PASSANDO”: A liberdade feminina através do funk

Por Isabela Rodrigues

INTRODUÇÃO

            Em suas apresentações relacionadas à questão de gênero, o historiador brasileiro Leandro Karnal sempre utiliza dizer que a sociedade na qual estamos inseridos é falocêntrica, isto porque todo processo de formulação do imaginário ocidental contemporâneo está ligado à noções que nos remontam à antiguidade onde os princípios mitológicos que permeiam os surgimentos estão centrados em figuras que nos remetem ao masculino.

            Desde Abraão, passando por Cronos e Príapo, temos nas figuras masculinas as medidas que servem de parâmetro para a constituição dos padrões de vigência em todos os setores da sociedade.

            Tomando como base para análise as reflexões de Karl Marx acerca da ideologia, podemos enquadrar a prevalência do masculino como símbolo de poder como um princípio passado de geração a geração e de contexto a contexto de forma inconsciente, onde os indivíduos reproduzem o discurso sem levar em consideração o impacto que este causa na manutenção das estruturas sociais.

            Bourdieu classifica essa gama ideológica como a sociedade da dominação masculina. A respeito desta percepção, fica claro que tal dominação não é responsável apenas por influências de caráter estrutural dentro da nossa sociedade, afinal, para além das estruturas, ela influi diretamente na construção das individualidades e, por consequência, contribui para a expansão da violência simbólica.

            Nos dedicaremos aqui à análise de um fenômeno contemporâneo que, impulsionado e propiciado pelo movimento feminista gestado desde o século XVIII, é responsável pelo levante de questionamentos acerca da validade da dominação masculina e que, mesmo sem este intuito, serve como objeto de ação contra a manutenção do status quo.

SOCIEDADE EM CHOQUE, EU VIM PRA INCOMODAR

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             O funk brasileiro surge como um movimento de expressão cultural das periferias no final dos anos 1970 na Zona Sul da capital carioca representado, inicialmente, por homens e trazendo em suas composições uma grande carga de misoginia e objetificação da mulher devido à grande propagação do ideário da dominação masculina nos círculos menos favorecidos da sociedade.

            Assim como seu predecessor, o funk estadunidense da década de 1960, o funk brasileiro também traz como uma de suas temáticas principais o sexo. Algo positivo, pois permite um trabalho na direção da quebra de tabus, porém, como já foi expressa, a presença massiva do imaginário masculino nas composições relegava às mulheres um papel subalterno.

            A respeito da inferiorização da mulher, podemos considerar que, tal prática está completamente relacionada à noção de ambiguidade estrutural abordada por Bourdieu, onde:

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e à casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo da vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos (BOURDIEU, 2002, p. 18).

            Deste modo, o que temos então é apenas um reforço do caráter dominante do indivíduo masculino dentro deste setor que, mesmo se tratando de um grupo marginalizado, acentua e reproduz ainda mais opressão.

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            Apesar de se tratar de um espaço ainda opressor, o cenário do funk, depois de muita crítica social e do novo levante feminino a partir do início do século XXI, começou a se abrir à atuação das mulheres, não apenas como parte da atração, sendo dançarinas ou animadoras do público, mas “numa vertente mais feminina, com direito a presença de mulheres comandando as pistas, com a temática do cotidiano vivido nas favelas em voga” (VIANA, 2010, 15).

            Neste contexto, surgiram os famosos “bondes”, sendo a Gaiola das Popozudas o grupo feminino de funk a atingir uma das maiores repercussões nacionais.

            Daí em diante, o número de funkeiras cresce a cada dia e as abordagens do funk feminino se tornam cada vez mais amplas, saindo apenas do cotidiano das favelas.

            Uma das principais críticas ao funk feminino na atualidade está relacionada à abordagem que este gênero traz a respeito do corpo, pois o discurso que trazem personalidades como Valesca Popozuda, Mc Carol, Mc Marcelly e Mc Mayara, não segue o padrão preestabelecido pela dominação masculina no qual apenas o homem tem direito sobre seu corpo e, não apenas direito, mas o dever de transmitir sexualidade, pois:

A virilidade, em seu aspecto ético mesmo, isto é, enquanto qualidade do vir, virtus, questão de honra (nif), princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física, através, sobretudo, das provas de potência sexual – defloração da noiva, progenitura masculina abundante, etc – que são aspectos de um homem que seja relmente um homem (BOURDIEU, 2002, p. 20).

            Assim, podemos compreender que, a exaltação sexual do masculino é algo que não é apenas permitido, mas necessário para que o indivíduo seja incluso nessa categoria, excluindo, então a mulher enquanto um ser biologicamente dotado de desejos sexuais e colocando-a numa posição de mero instrumento da sexualidade masculina.

            Desta visão que aceita e reproduz a dominação masculina, parte, então, o espanto e o asco ao se deparar com o grito de liberdade sexual presente em composições como “quero te dar” ou “agora eu tô solteira”.

            Como indicado no título deste subitem, o funk feminino, apesar de estar estreitamente ligado à libertação sexual das mulheres, não se atem apenas a este anseio, pois é também um objeto de denúncia da violência a qual as mulheres são submetidas diariamente, principalmente nas periferias.

            O que devemos deixar claro, no entanto, é o fato de que mesmo havendo este compromisso com a libertação feminina, esta expressão ainda traz marcas profundas deixadas pelo imaginário da dominação masculina, tais como a competitividade entre as mulheres e a exaltação da figura masculina.

            Ainda através de Bourdieu podemos dizer que todas as práticas que contribuem para a manutenção da sociedade permeada pela dominação masculina se relacionam com as noções de poder e violência simbólicos.

            Podemos compreender por poder simbólico, algo bem próximo ao conceito de ideologia que encontramos em Marx, pois, para Bourdieu (1989, p. 7) “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”.

            Além da dominação masculina, podemos tomar como representantes do poder simbólico em nossa sociedade a estratificação social que é abordada e aceita como algo natural, pois foi inicialmente reproduzida como algo necessário para a manutenção de uma ordem metafisicamente estabelecida.

            Sendo assim, para que haja a desconstrução da sociedade de dominação masculina, existe a necessidade de uma tomada paulatina de consciência acerca dessa relação de poder que é aceita e transmitida entre os pares de forma desapercebida, medida esta dificultada pela existência de outro fator diretamente ligado à adesão dos dominados ao discurso dominante.

            Nesse sentido, as mulheres podem ser representadas, então, como vítimas da violência simbólica, pois são impelidas a aderirem e reproduzirem a dominação masculina através de diversos fatores exteriores que permeiam suas existências, afinal, como sabemos, todas as produções humanas são passíveis da transmissão do discurso do poder.

CONCLUSÃO

             O funk feminino, então, apesar de ser uma forte arma de resistência à sociedade de dominação masculina, ainda sofre rejeição porque este ideário está demasiadamente arraigado na sociedade.

            Podemos entender, no entanto, que a presença e o protagonismo das mulheres dentro de um cenário triplamente desfavorecido, já que além da condição de mulher, são, na maioria das vezes, negras e periféricas, já é um grande empoderamento em meio a tanta opressão.

            Através dos conceitos trabalhados, vimos que para que geremos um cenário mais favorável para o desenvolvimento saudável da humanidade, dependemos de diversas mudanças estruturais na sociedade, além da adesão de praticas de ação transformadora como a que promovem as mc’s.

REFERÊNCIAS

 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989.

VIANA. L. R. O funk no Brasil: música desimtermediada na cibercultura. Sonora – UNICAMP, vol. 3, nº 5, 2010, p. 3-24.

NÓS E OS OUTROS

Por Lucas Santos

O que temos a dizer ao outro nem sempre é o que ele precisa ouvir.

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Este é o pensamento que se faz pouquíssimo presente nos discursos trocados entre diversas frentes no cenário atual.

Nenhum de nós é obrigado a concordar com o ponto de vista do outro e isto é absolutamente claro, pois cada indivíduo possui uma forma de interpretação do mundo influenciada por inúmeros fatores externos que o acompanham desde o seu nascimento e fazem parte da formulação de seu discurso.

Existe, no entanto, uma grande confusão que envolve conceitos básicos para a harmonia entre os indivíduos.

É extremamente fácil ferir o outro e se apoiar na falácia da liberdade de expressão para justificar posicionamentos errôneos, ainda mais se não se compreende o sentido de tal substância.

Pensemos, então, na liberdade, que nos panoramas atuais se tornou outro substantivo para designar o individualismo. Devemos levar em conta, que os grupos detentores do poder sempre agem para benefício próprio e aproveitam ao máximo as oportunidades para disseminar suas ideologias segregantes para, assim, manter sua posição privilegiada. Dessa forma a ressignificação de conceitos é uma ferramenta bastante recorrente neste meio.

Temos, então, a bela liberdade que consiste em fazer o que quiser ou em um substantivo que designa a qualidade de ser livre ou ainda naquilo que todos sabem o que é, mas ninguém sabe dizer o que é. É dessa forma que se transforma um conceito fundamental em um modo fofo de se individualizar os sujeitos.

Não que ser individual seja algo ruim. Pelo contrário. Necessitamos de nossa individualidade para nos auto afirmarmos enquanto parte integrante do social. Porém, este tipo de individualização não leva o outro em consideração, o que foge completamente do ideal da liberdade, pois esta deveria ser uma construção social, em que todas as partes estariam em conformidade e onde a solidariedade seria o princípio fundamental, afinal, enquanto animais sociais dependemos do outro tanto quanto ele depende de nós.

Não é fácil aceitar que o que dizemos ao outro lhe faz mal, ou que não o estamos ajudando quando julgamos seu posicionamento de forma preconceituosa sem se por em seu lugar, ou que não devemos aplicar nossos valores sobre as decisões do outro.

Menos fácil ainda é aceitar que defendemos pontos de vista que não contribuem em nada com o bem estar dos que nos rodeiam.

É muito fácil, porém, dizer ao outro que ele está praticando vitimismo quando ele se sente atacado, é fácil dizer à uma mulher negra da periferia que ela está lá porque não mereceu estar em outro lugar, é fácil dizer à um casal homossexual que eles não são uma família, é fácil dizer a uma mulher trans que ela nunca vai ser mulher pois não pode parir. É fácil falar e GRITAR que não te respeitam quando as críticas negativas recaem sobre seu preconceito.

Difícil é ouvir, procurar conhecer o outro, saber do que ele precisa, praticar empatia, lembrar-se de que não estamos aqui sozinhos e de que os outros não são iguais a nós.

Antes de atacar alguém, antes de dizer que o outro está mal porque merece, pois ninguém fica bem se não trabalha para chegar lá, lembre-se que você está lá apoiado no sofrimento do outro, que cada vez que você ganha, centenas, milhares, estão perdendo porque tudo que você defende se apoia na injustiça e que se quer ser legalista o outro possui todo o direito para ir e vir, e que o mesmo vale pra você, porém, ambos só podem ir até onde o limite da lei os permite, que o corpo e a mente pertencem a si e que o mesmo vale para o outro e que se pensas demais em como o outro pensa e se comporta não está pensando em como fazer da sociedade um lugar melhor.

Até a vista!

Iásnaia Poliana, Prévost e Escola Moderna: Experiências Libertárias na Educação

Por Lucas Santos

Aqui serão expostas algumas das principais experiências educacionais relacionadas ao anarquismo, passando pela fundação da Escola Moderna e a criação destas escolas no Brasil, espaços onde era utilizado o objeto desta pesquisa, o manual Compêndio de História Universal.

Para o início trataremos da experiência mais antiga, dentre as abordadas, que tem lugar em território russo, com suas atividades iniciadas a década de 1850, mais precisamente no ano de 1859, sob a supervisão do literato e ideólogo anarquista Liev Nikoláievich Tolstói (1828 – 1910). Tolstói adere ao pensamento anarquista por força do contexto, visto que já nas décadas de 30 e 40 do século XIX pensadores como Piotr Kropotkin e Mikhail Bakunin já agitavam levantes contra o czar e difundiam o pensamento libertário através de suas obras e ações. Outra influência fulcral para o desenvolvimento da visão libertária de Tolstói foi seu encontro com Proudhon em Bruxelas no ano de 1861, durante suas viagens pelo território europeu.

tolstói

Tolstói por fazer parte de um círculo tradicional, ostentando inclusive o título de conde, funda o que se tem por anarquismo-cristão, o que se adapta de forma quase simbiótica ao seu público dentro de Iásnaia Poliana*, afinal o sentimento religioso era mister dentro da área rural provinciana russa.

A motivação de Tolstói para a realização desse trabalho pedagógico com o campesinato russo vem da ausência do Estado no cumprimento de sua função, visto que “na década de 1850, menos de 6% da população era alfabetizada. Nas regiões rurais não existiam escolas públicas, nem mesmo no nível primário ou fundamental, e a pouca instrução que havia – oferecida por algum padre ou soldado reformado […] – era primitiva e paga” onde “os professores ensinavam de forma mecânica e pouco imaginativa, sem incentivar o pensamento, e aplicavam punições corporais.”[1]

A experiência levada a cabo por Tolstói em Iásnaia Poliana possuía, então, um cunho de apoio mútuo, deste modo, dadas as condições dos camponeses dentro de regime imperial russo “a princípio a iniciativa foi recebida com desconfiança […], principalmente porque não era preciso pagar (Tolstói custeava tudo), mas em março de 1860, já haviam cinquenta alunos matriculados – meninos meninas e alguns adultos.”[2]

Em sua prática em Iásnaia Poliana, Tólstói tinha por objetivo a aproximação entre a experiência de aprendizagem e a liberdade, assim:

Seus alunos tinham permissão para frequentar as aulas quando bem quisessem, e não havia castigos físicos. Havia elaborado um sólido programa curricular com doze matérias, mas dava importância à flexibilidade, de modo que o professor se adequasse às necessidades de seus alunos, e não o contrário.[3]

Tolstói expõe a liberdade dada aos alunos como algo que é ao mesmo tempo um dificultador e um facilitador, o que fica claro em uma nota publicada por ele no periódico educacional da Iásnaia Poliana, onde se lê:

Ninguém traz consigo coisa alguma, nem livros nem cadernos. Nenhum aluno é obrigado a fazer dever de casa. Além de virem de mãos vazias, os alunos não são obrigados a decorar lições, sequer a aula do dia anterior. Eles não se atormentam com o pensamento da tarefa por fazer. Trazem apenas a si mesmos, sua natureza receptiva, e a certeza de que hoje a escola será tão alegre quanto ontem […]. Ninguém jamais é repreendido por se atrasar. Eles se sentam onde querem: bancos, mesas, peitoris das janelas, poltronas. O horário prevê quatro aulas antes do jantar, que às vezes na prática se tornam três ou duas, e que podem ser sobre assuntos bastante diferentes […]. Na minha opinião essa desordem externa é útil e necessária, por mais estranha e inconveniente que possa parecer ao professor […]. De início essa desordem, ou ordem livre, nos assusta, porque fomos educados de outra maneira e estamos acostumados a algo bem diferente.

Tolstoi inaugura bib de Yasnaia Poliana

Em segundo lugar, neste como em muitos casos semelhantes, a coerção só é usada por causa de pressa ou falta de respeito pela natureza humana […].[4]

Podemos demonstrar como fator de dificuldade para a prática da liberdade em sua experiência, a própria noção de liberdade trazida por Tolstói, afinal, podemos notar que, talvez sobre a influência da filosofia humanista, sua compreensão do conceito de liberdade se limita a uma noção quase enciclopédica onde é livre aquele que não está preso ou limitado. O que será trabalhado posteriormente por Bakunin, que passa a expor a liberdade enquanto algo que deve ser construído socialmente, onde a educação tem papel fundamental.

Em 1961 ao retornar de suas viagens pelo território europeu, Tolstói recebe o título de juiz de paz, o que lhe possibilita a ampliação de seus planos. A este respeito é apontado que:

Valendo-se de sua posição de juiz de paz, no outono de 1861 ele já conseguira abrir 21 escolas locais, todas funcionando a pleno vapor. As escolas eram improvisadas em cabanas. Não havia mesas nem carteiras nem lousas, e as paredes eram tão sujas que nelas se podia escrever com giz, portanto serviam perfeitamente bem como quadro-negro. Entre os professores havia os usuais padres ou ex-soldados, mas também ex-universitários que precisavam de emprego. Em outubro do ano anterior haviam eclodido manifestações depois que o governo introduziu uma série de malfadadas reformas universitárias, incluindo a frequência obrigatória e o pagamento de taxas proibitivas para muitos estudantes. Como resultado muitos deles acabaram expulsos. Cada estudante-professor recebia cinquenta copeques por mês, portanto os salários mensais variavam em média dez rublos. Os professores também recebiam um honorário por sua contribuição com a revista Iásnaia Poliana.[5]

A prática da Educação por Tolstói, então, pode ser compreendida como uma aspiração por mudanças na relação entre os indivíduos e o conhecimento, mas não apenas isso, pois as mudanças deveriam ocorrer também nas relações interpessoais, isso notado no fato de que o próprio programa de ensino era formulado de modo que não visava à separação entre meninos e meninas, pratica comum nas escolas normais do contexto devido às relações patriarcais, e incluía adultos, todos passando pelos mesmos processos de instrução.

 Ao decorrer de sua vida León se envolveu com maior intensidade no âmbito educacional chegando, entre 1874 e 1875, a dirigir 70 escolas em seu distrito, todas seguindo a metodologia desenvolvida por ele, carregada, além do ideal de liberdade, de um forte sentimento anti clericalista.

As atitudes educacionais desenvolvidas por Tolstói, devido ao seu envolvimento com o pensamento libertário, podem por um lado ser compreendidas como parte da Educação Libertária por seu contexto de gestação, porém, conceitualmente a Educação Libertária possui, segundo Silvio Gallo, duas vertentes constituídas, uma amparada no pensamento de Rousseau, que parte do principio de que a educação deve acontecer por meio da liberdade, esta notada como vigente dentro da prática das escolas tosltoianas. A liberdade como um meio para a educação, no entanto, pode ser tomada como algo problemático, visto que seu fruto é o individualismo, o que já ocorria nos meios liberais tradicionais da educação.[6]

Outra forma pela qual a Educação Libertária procede é tendo a liberdade como finalidade da educação ou como produto, onde se tem o homem livre como aquele que possui todas as faculdades tanto para o trabalho intelectual quanto para o braçal, pois deste modo se detêm o controle de sua própria produção.

A prática da educação que visa à liberdade pode ser percebida em outra experiência, já em um período um pouco posterior ao início das atividades de Tolstói, que começa a ser idealizada já em 1868 quando a Associação dos Trabalhadores aprova os projetos educacionais de Paul Robin (1837 – 1912).

robin

A experiência se inicia efetivamente, no entanto, a partir de 1880 quando Robin assume a diretoria do Asilo Público para Órfãos de Cempuís, na Picardia francesa, denominado Prévost, em homenagem ao fundador Joseph-Gabriel Prévost, e desenvolve seu trabalho tendo como base os ideais de Proudhon e Bakunin, formulando, assim um programa baseado na educação integral (citado abaixo como instrução integral).

Exercendo as funções de casa e escola, o Orfanato Prévost constituiu, por sua natureza, um educandário de tempo integral. Contudo, o conceito de “instrução integral” cunhado pelos libertários não se restringiu à permanência dos alunos no espaço escolar por um longo período do dia. Para os defensores da acracia, a instrução integral deveria envolver a mais ampla formação, articulando todos os aspectos do desenvolvimento humano.[7]

Para a realização de seus intentos Robin se fundamentou no que foi exposto pelo geógrafo anarquista Piotr Kropotkin, dentro do “Comitê para o Ensino Anarquista”, onde se diz que o ensino deve ser[8]:

  1. b) racional, isto é, fundamentado na razão e conforme os princípios da ciência atual, e não na fé; no desenvolvimento da dignidade e da independência pessoal, e não na piedade e na obediência; na abolição da ficção divina, causa eterna e absoluta da servidão;
  2. c) misto, isto é, favorecer a co-educação sexual numa comunhão constante, fraternal entre meninos e meninas. Essa co-educação, ao invés de constituir um perigo, afasta do pensamento da criança as curiosidades malsãs, e torna-se uma ocasião para sábias condições que preservam e asseguram uma alta moralidade;
  3. d) libertário, isto é, numa palavra, consagrar em proveito da libertação o sacrifício progressivo da autoridade, uma vez que o objetivo final da educação é formar homens livres que respeitem e amem a liberdade alheia.[9]

Seguindo esses preceitos durante seus quatorze anos na direção do internato, o educador anarquista buscou estabelecer “a extinção das relações de dominação e hierarquização que se haviam consolidado no espaço intra-escolar, de forma a permitir que a espontaneidade, a liberdade, a criatividade e a responsabilidade dos indivíduos pudessem emergir, possibilitando o desenvolvimento da criança nas suas múltiplas dimensões.”[10]

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Fica claro aqui que o objetivo de Robin era o estabelecimento de uma prática educacional onde os indivíduos, através de um processo de desconstrução das estruturas estabelecidas poderiam vislumbrar a possibilidade de uma reorganização pautada em princípios de liberdade e que, embutido nesse ideal de desconstrução estava prevista a construção da liberdade enquanto prática social, pois para ele:

Todo homem deve ser considerado sob dois pontos de vista: como ser isolado, independente, completo por si só e como membro da coletividade. […] Como ser distinto e completo, ele tem direito ao desenvolvimento total de suas faculdades; como membro da coletividade, ele deve contribuir com a sua parte de trabalho íntegro e necessário. Se este trabalho se distribui segundo a justiça entre todos os homens; se as necessidades extravagantes de alguns deles não alteram profundamente o equilíbrio entre o consumo e a produção; se os instrumentos criados pela indústria moderna estão, como convém, à disposição do trabalhador; enfim, se o trabalho é racionalmente organizado e se os produtos derivados dele são distribuídos de forma equitativa, à parte de trabalho exigida de cada um se reduzirá consideravelmente, e o tempo de ócio será muito maior.[11]

Vemos aqui que a preocupação maior de Robin não é a de doutrinação, visto que seu programa visa, não apenas a disseminação dos ideais e propostas do pensamento libertário, mas, uma tentativa de através destes ideais, alcançar, em longo prazo, condições que possibilitem uma relação harmoniosa entre os indivíduos, que levem em consideração suas próprias noções e seus limites, porém, que não os isolem de seu contexto, afinal sua contribuição ao coletivo é indispensável para que as relações não sejam apenas de liberdade, mas de igualdade e justiça, levando em consideração que “La sociedad es un cuerpo organizado compuesto de individualidades. Si éstas pretendí es entender unos derechos superiores a la misma sociedad, el lazo social sería disuelto, las individualidades librarían entre sí una guerra encarnizada, y después de haber destruido el derecho social, el derecho individual, sería a su vez pronto aniquilado.”[12]

As Escolas Racionalistas surgiram, então, dentro desse contexto de busca por uma reorganização, trataremos a partir daqui de uma das mais expressivas experiências que, até os dias atuais é alvo de críticas e estudos.

A Escola Moderna (Escuela Moderna) teve suas primeiras instalações a Rua de Bailén (Calle de Bailén), nº 70, sobre comando do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia (1859 – 1909), tendo como diretora Clemência Jacquinet[13], e iniciou suas atividades em 1901, com a primeira aula dedicada a 30 alunos, sendo 12 meninas e 18 meninos, seguindo a premissa adotada por Robin e Tolstói da educação mista.

escuela moderna

Ferrer tem sua preocupação com a educação agitada após seu envolvimento com o movimento republicano espanhol, cujo qual “sempre demonstrou um deplorável desconhecimento da importância capital que o sistema de educação tem para um povo”.[14]

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Depois de quinze anos de residência em Paris, atuando como professor de espanhol na Associação Fitotécnica da França, empreendeu uma série de viagens por diversos países ao lado e sob financiamento de uma de suas alunas, senhorita Meunier, que pertencente a uma família da alta sociedade, se viu convencida pelos ideais de Ferrer que tomara a decisão na seguinte exposição:

Senhorita, chegamos a um ponto em que é preciso nos determinarmos a buscar uma orientação nova. O mundo necessita de nós, reclama o nosso apoio, e conscientemente não podemos negá-lo. Me parece que empregar em comodidade e prazeres recursos que fazem parte do patrimônio universal e que serviriam para fundar uma instituição útil e reparadora é cometer uma defraudação, e isto não pode ser feito nem no conceito de crente nem no de livre-pensador. Portanto anuncio a você que não pode contar comigo para as próximas viagens.[15]

Após este episódio Meunier cedeu à Ferrer os recursos necessários para a fundação de sua instituição de ensino racional, o que rendeu ao último a submissão a um interrogatório judicial sob a acusação de ter exercido sobre a aluna “um poder sugestivo com um fim egoísta”.[16]

Com toda essa movimentação surge a experiência que se pauta nos princípios libertários constituídos até então, tendo como influência, segundo os apontamentos de Palácios os pensamentos desenvolvidos de “Godwin (1756 – 1836) a Kropotkin, passando pelos socialistas utópicos, Stirner (1806 – 1856). Bakunin, etc, tendo se relacionado com alguns deles em Paris”.[17]

Os ideais por trás da Escola Moderna, apesar de romperem com várias das noções tradicionais, podem ser tomados como iminentes ao seu próprio contexto, visto que o século XIX é marcadamente cientificista por parte da academia, o que se buscava, então, era a deflagração de um ideário que estivesse distante das noções em vigência no ensino estatal, visto que este trazia consigo o dogmatismo e consequentemente ideias errôneas erigidas através do senso comum. Desta forma Ferrer aponta que:

À hora atual o sol não tão somente cobre os cumes; estamos em luz quase meridiana que invade até os sopés das montanhas. A ciência felizmente já não é patrimônio de um reduzido grupo de privilegiados; saus irradiações benfeitoras penetram com mais ou menos consciência por todas as camadas sociais. Por todas as partes dissipa os erros tradicionais […] para que terminem de uma vez por todas os exclusivismos e os privilégios.[18]

Deste modo, então, podemos apontar que as bases do ensino adotado por Ferrer seguem os princípios da ciência, com seus conhecimentos exatos e positivos, visando a construção de um conhecimento sólido que serviria de base para uma reorganização social sem preconceitos, sem ignorar, porém as percepções individuais dos sujeitos, o que é notado na afirmação: “não se educa o homem disciplinando sua inteligência, fazendo caso omisso do coração e relegando a vontade. O homem na unidade, […] é um complexo”.[19]

Este modo racionalista de pensar o ensino parte das premissas de que o individuo nasce sem ideias preconcebidas e que suas primeiras percepções são adquiridas das pessoas que a cercam, passando por um processo de comparações e modificações, direcionadas pela observação e pelas relações com o ambiente. Assim a finalidade de uma educação cientificista seria a de que todo conhecimento adquirido pelo individuo fosse palpável e experimentável e não erigido através de princípios de fé, o que lhe proporcionaria a característica de observador ou experimentador e o preparo para todo tipo de estudo.[20]

A escola recebia crianças a partir dos cinco anos de idade e estava organizada em: Primeira Classe Preparatória, Segunda Classe Preparatória, Curso Médio e Normal Preparatório.

A primeira preparatória estava especificamente dividida nos seguintes períodos: Mañana de 9h a 11h3/4 – visita de limpieza – orden en la clase, interrogatorio sobre el trabajo del día anterior, recreo, ejercicios manuales, lección de cosas, recreo e ejercicios manuales; Tarde de 2h a 4h3/4 – visita de limpieza, narración, interrogatorio de recapitulación, gimnasia. Podemos notar nesta divisão a manifestação dos ideais da Educação Integral, pois além das atividades exclusivamente intelectuais presentes nas lições (lección de cosas) temos presentes diversos tipos de atividades manuais.

A segunda preparatória se dividia em disciplinas específicas, sendo: lecturas e escritura, estudio del idioma, Geografía de España e Ciencias Naturales.

O Curso Medio se divide também em disciplinas específicas: Lectura Expresiva, Lenguas española y francesa, Matemáticas, Ciencias Naturales, Ciencias Físicas, Primer año normal, Geografía, Historia, Aritmética e Geometría y Dibujo.

O Normal Preparatório segue a mesma grade do Medio, porém é voltado à capacitação dos indivíduos para a pesquisa individual e a construção do conhecimento por um viés próprio.[21]

O libertarismo está presente nas aspirações pedagógicas de Ferrer, quando é apontado que o Estado por reconhecer o poder da educação a toma para si e a controla como pode, afinal:

Os governos sempre se preocuparam em dirigir a educação do povo, e sabem melhor que ninguém que seu poder está totalmente baseado na escola e por isso a monopolizam cada vez com maior empenho. Foi o tempo em que os governos se opunham à difusão da instrução e procuravam restringir a educação das massas. […] os progressos da ciência e os descobrimentos multiplicados revolucionaram as condições de trabalho e da produção; já não é possível que o povo permaneça ignorante; necessitam dele instruído para que a situação econômica de um país seja conservada e progrida contra a concorrência universal. Assim reconhecido os governos quiseram uma organização cada vez mais completa da escola, não porque esperam a renovação da sociedade pela educação, mas porque necessitam de indivíduos, operários, instrumento de trabalho mais aperfeiçoados para que frutifiquem as empresas industriais e os capitais a elas dedicados.[22]

Além de atuar na escola Ferrer dirigia La Editorial, editora fundada juntamente com a escola para abastecê-la com material bibliográfico, visto que o educador não via os materiais usuais de seu contexto como apropriados para seu intento, pois, apresentavam fatores como o patriotismo e a procura da disseminação de visões políticas contrárias à autonomia do ser.

A editora foi responsável pela publicação de 30 títulos entre manuais, cartilhas, compêndios e títulos de literatura, além de 72 números do Boletín de la Escuela Moderna, entre 1901 e 1906, estes contando com textos de Robin, Jacquinet, do próprio Ferrer e de mais alguns colaboradores, além de conter pequenos trechos de contos, tratados sobre higiene e informativos sobre o funcionamento da escola.

É importante citar a abertura da escola para uma aula matinal aos domingos, onde os pais dos alunos poderiam estar presentes para participar das atividades. Além, disso, existiam as atividades extras como:

[…] visitas a fábricas, museus, etc e a correspondência escolar entre alunos de diferentes escolas. As visitas constituíam assuntos de debates entre professores e alunos, que eram incentivados a dar suas opiniões e refletir sobre o que foi dito através do exercício escrito de uma redação […].[23]

As atividades da Escola Moderna foram intensas e sua notabilidade cresceu bastante no período compreendido entre sua fundação e o incidente de 1906, onde Mateo Morale, que havia sido bibliotecário da escola, atirou uma bomba na carruagem de transporte do Rei Afonso XIII, o que serviu de álibi para a perseguição de Ferrer, visto como envolvido pelo Estado e pela Igreja.[24]

 A condenação de Ferrer, porém, pode ser tomada como atrelada às suas concepções político educacionais, onde:

Muitos dos críticos mais virulentos, em geral católicos, direitistas e conservadores, acusam Ferrer de uma série de atos – de fato e de pensamento – a partir da análise dos livros didáticos publicados pela editorial da Escuela Moderna. Portanto, o caráter pedagógico se funde e se complementa com as ideias políticas e métodos científicos contidos nas folhas cerradas entre as singelas encadernações de capas vermelhas de uma dúzia de livretos escolares que ganharam vida entre 1901 e 1906.[25]

Ferrer após o episódio foi, então, levado à prisão modelo de Madrid e mesmo sendo livrado das acusações por falta de provas teve de fechar a escola em Barcelona permanecendo em atividade apenas a editora. Em um período posterior retornou a França, onde funda a “Liga Internacional para a Educação Racionalista” e lança a revista “L’École Rénovée”.

Após uma temporada na Inglaterra, onde esteve em contato com Kropotkin, retorna á Espanha em 1909, onde se depara com o episódio conhecido como “Semana Trágica de Barcelona”. Sua prisão foi iminente, a editora foi fechada e então “Ferrer foi acusado de ser o autor e chefe da revolução da Semana Trágica de Barcelona, e foi condenado à morte.”[26]

A morte de Ferrer, no entanto, não significou o fim das experiências da Escola Moderna, visto que o ideal da educação racionalista alcançou outras localidades e que o material produzido para a instrução dos alunos na Rua de Bailén foi adotado por:

[…] inúmeras escolas privadas da época […] umas setenta sociedades, centros ateneus, federações e associações operárias. E mesmo depois, quando a Escola Moderna foi proibida pelo Estado (em 1909 após a morte de Ferrer), a utilização não cessou de ampliar-se.[27]

O ideal racionalista foi difundido, então, entre diversos países europeus, o que atrelado à grande adesão ao libertarismo significou a abertura de diversos espaços libertários de educação.

No Brasil a morte de Ferrer teve seus impactos nos meios libertários, o que pode ser visto na nota “O grande Martyr da educação popular”, do periódico ácrata e anticlerical A Lanterna, onde se lê:

O grande crime foi consumado.

Francisco Ferrer, o illustre e talentoso pensador hespanhol, o ilustre talentoso apostolo da educação popular acaba de ser assassinado nos calabouços de Montjuich.[28]

Após a publicação da nota citada, várias outras podem ser vistas nas edições subsequentes do periódico, incluindo, inclusive, traduções de textos do próprio Ferrer.

Apesar de o Brasil contar, antes da morte de Ferrer, com espaços de prática da educação libertária, como a Associação do Livre Pensamento, que já em 1909 funcionava em São Paulo, a Rua José Bonifácio, nº 17, foi o evento marcante aos libertários que serviu de motor para a iniciativa que buscava fundar uma das experiências mais significativas para a educação libertária em solo brasileiro, afinal, a partir do fuzilamento de seu “mártir” os anarquistas organizaram o Comitê da Escola Moderna, que, presente, na forma de subcomitês, em diversos bairros da capital paulista e do município do Rio de Janeiro, buscava angariar fundos para a abertura da Escola Moderna nº 1 em São Paulo.

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Essa organização realizava diversas atividades para a arrecadação, além de cada associado contribuir com uma taxa mínima de 1$000 mensalmente, e por funcionar em inúmeras localidades, como a Moóca e a Sé, que tinham como principais moradores os operários, tinha na imprensa operária um dos mais abrangentes meios de articulação. O próprio A Lanterna, citado anteriormente, criou uma seção denominada “A Escola Moderna”, onde notícias e anúncios do comitê eram publicados.

Os moldes estabelecidos para a Escola Moderna de São Paulo eram basicamente os mesmo vistos em Barcelona, o que pode ser lido na publicação “A Escola Moderna em São Paulo”, que diz:

Em assembleia realizada nesta capital, no dia 27 de janeiro do corrente anno, foi resolvida a fundação duma ESCOLA MODERNA, baseada no ensino racionalista adoptado por Francisco Ferrer […].

Esta iniciativa não pertence a nenhum partido ou escola política. Para cooperar na sua realização são convidados, num ardoroso apello, todos os livres pensadores que desinteressadamente se preocupam com a instrução racionalista e integral da criança, base segura para a formação de duma humanidade livre de preconceitos políticos e religiosos e capaz de instaurar um regime de vida baseado na liberdade, na tolerância mútua e na igualdade de possibilidades para o desenvolvimento moral, intelectual e physico dos seres humanos.[29]

Em 13 de maio de 1912 é fundada, então, a Escola Moderna nº 1 em São Paulo, no Bairro do Belenzinho a Rua Saldanha Marinho, nº 58, tendo anexos à editora, como a escola de Barcelona, que visava à publicação de materiais didáticos e do boletim da escola moderna.

Na direção da escola temos o pedagogo, proveniente do município de Jaú, João Penteado, que “[…] já participava das manifestações operárias, era orador e escrevia na imprensa libertária”.[30]

No mesmo ano foi fundada a Escola Moderna nº 2 no Brás, a Rua Müller, nº 74, tendo em sua direção, Adelino de Pinho, e o jornal O Início, produzido pelos alunos da instituição.

Podemos assinalar, também, a criação de mais três escolas modernas: duas no interior paulista, nas cidades de Cândido e Bauru, fundadas em 1914 e uma em São Caetano, fundada em 1918 e que, apesar de ser uma iniciativa apoiada pela Coordenação Operária Brasileira (COB), é dito que:

As escolas modernas possuem mais uma peculiaridade em relação à maioria das demais escolas libertárias do período, por não se vincularem aos sindicatos. Isso pode ter ligação com seu desenvolvimento bem sucedido, por se distanciarem do núcleo de represálias que era destinado aos sindicatos.[31]

Esse fator, porém, não impediu a intervenção do Estado, visto que após as movimentações das greves gerais de 1917, 1918 e 1919 o aparelho repressivo passou a ter como principal alvo os libertários.

As atividades escolares foram encerradas no ano de 1919, após a morte do diretor da Escola Moderna de São Caetano, vítima de explosão ocorrida em uma casa no Brás. Este fato serviu como justificativa para que o Diretor Geral de Instrução Pública do Estado de São Paulo, Oscar Thompson, caçasse, em caráter definitivo, a licença de funcionamento da Escola Moderna nº 1 e nº 2. Os recursos impetrados e o habeas corpus não surtiram efeito e as Escolas Modernas de São Paulo e de São Caetano foram definitivamente fechadas.[32]

A medida de fechamento das escolas foi tomada devido à interpretação da explosão como uma tentativa de atentado, pois “segundo os jornais da Grande Imprensa, a explosão teria ocorrido devido a um erro de cálculo dos anarquistas que estariam se preparando para um ataque armado”.[33]

A repressão do Estado, no entanto, não atingiu apenas a Escola Moderna, mas outros diversos estabelecimentos de ensino e imprensa libertários.

O que se configura após estes episódios é um “silêncio libertário” que se acentua após a criação do Partido Socialista (PSB) e as movimentações constitucionalistas, que passou a ser rompido a partir da redemocratização pós-ditadura civil-militar, onde notamos a criação de coletivos e federações anarquistas, bem como da Coordenação Anarquista Brasileira, fundada em 2012.

* Nome dado a uma das propriedades rurais herdadas por Tolstói onde se iniciaram seus trabalhos pedagógicos desenvolvidos com o campesinato.

[1] BARTLETT, Rosamund. Tolstói: A biografia. Trad. Renato Marques. São Paulo: Globo, 2013, p. 127.

[2] Id. Ibid., p. 140.

[3] Id. Ibid., p. 142.

[4] TOLSTÒI, León. Iásnaia Poliana. Apud: BARTLETT, Rosamund. Tolstói: A biografia. Trad. Renato Marques. São Paulo: Globo, 2013, p. 147.

[5] BARTLETT. Op. Cit., p. 151.

[6] GALLO, Sílvio. Pedagogia Libertária: Anarquistas, anarquismos e educação. São Paulo: Imaginário, 1995.

[7] CASTRO, Rogério Cunha de. A Utopia possível: Paul Robin e o Orfanato Prevóst. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011, p. 6.

[8] O item a) foi suprimidom, pois trata da educação integral já exposta no parágrafo anterior.

[9] KROPOTKIN. In: LUIZETTO, Flávio. Utopias anarquistas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Apud: CASTRO, Rogério Cunha de. A Utopia possível: Paul Robin e o Orfanato Prevóst. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011, p. 7.

[10] FLORESTA, Leila. Um projeto de educação integral: A experiência de Paul Robin em “Cempuís”. Olhares e trilhas. Uberlândia, Ano VIII, n. 8, p. 121 – 134, 2007, p. 122.

[11] ROBIN, Paul. A educação Integral. In: MORIYÓN, Felix Garcia (org.). Educação Libertária. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, p. 88 – 109, p. 89.

[12] ROBIN, Paul. Manifestó a los partidos de la educación integral (Un antecedente de la Escuela Moderna). Barcelona: José J.de Olañeta Editor, 1981, p. 35.

[13] Além de fazer parte do corpo docente Clemência dirigiu a escola de sua fundação até 1903.

[14] FERRER, Francisco. A Escola Moderna. Piracicaba: Ateneu Diego Giménez (COB – AIT), 2010, p. 2.

[15] Id. Ibid., p. 4.

[16] Id. Ibid., p. 4.

[17] PALÁCIOS, J. La cuestión escolar. Barcelona: Laia, 1981. Apud: SILVA, Doris Accioly. Anarquistas: Criação cultural, invenção pedagógica. Educação & Sociedade, Campinas, v.32, n.114, p.87-102, 2011, p. 99.

[18] FERRER, Francisco. Op. Cit., p. 9 – 10.

[19] Id. Ibid., p. 11.

[20] FERRER, Francisco. Op. Cit.

[21] ESCUELA MODERNA. Boletín de la Escuela Moderna, Año I, Num. II, III, IV e V , Barcelona 30 de Octubre de 1901.

[22] FERRER, Fracisco. Op. Cit., p. 28.

[23] MEHL, Aracely. Francisco Ferrer y Guardia: Educação e a imprensa anarco-sindicalista – “A Plebe” (1917 – 1919). Ponta Grossa. 2007. 150f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Educação e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, p. 34.

[24] Id. Ibid.

[25] ROSA, Rodrigo. Anarquismo, Ciência e Educação: Francisco Ferrer y Guardia e a rede de militantes e cientistas em torno do ensino racionalista. São Paulo. 2013. 379f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, p. 215.

[26] MEHL, Aracely. Op. Cit., p. 39.

[27] SAFÓN, Ramon. Apud: MEHL, Aracely. Op. Cit., p. 49.

[28] A LANTERNA. Ano IV, nº 1, 17 de outubro de 1909.

[29] A LANTERNA. Ano IV, nº 22, 12 de março de 1910.

[30] CASALVARA, Tatiana da Silva. A Militância Anarquista Através das Relações Mantidas por João Penteado – Estratégias de Sobrevivência Pós Anos 20. São Paulo. 2012. 279f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, p. 96.

[31] MACIEL, Luiza Vieira. Contribuições da educação anarquista no Brasil da I República. Publicado em 29 de maio de 2010. Disponível em: <http://passapalavra.info/2010/05/24468>. Acessado em: 13/04/2015.

[32] MORAES, José Damiro de. Escola Moderna nº1 – Estabelecimento de Instrução e educação. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_escola_moderna_n_1.htm>. Acessado em: 13/04/2015.

[33] CASALVARA. Op. Cit., p. 99.

O anarquismo como opção para o restabelecimento da ordem: Kobane Resiste!

Por Lucas Santos
Kobane é uma cidade localizada dentro do território denominado Rojava (Oeste) que está entre a fronteira Sírio-turca e é habitado pelo povo curdo.
Durante a guerra civil síria, devido à ação da esquerda, representada por partidos como o PYD (Partido da União Democrática) e o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e pelo YPG (exercito guerrilheiro curdo), o território conseguiu sua independência que a partir de Kobane se espalhou pelas demais cidades de maioria populacional curda.
Em setembro de 2014 o território passou a sofrer constantes ofensivas do Daesh (Estado Islâmico) que resultaram na tomada de mais de 300 vilarejos curdos dentro do território independente.
O grande destaque das lutas do povo curdo é dado ao YPJ (Unidade de Proteção das Mulheres), formado por aproximadamente 7.000 guerrilheiras que atuam no front contra os avanços de Daesh e os ataques constantes da Gendarmaria (Forças Policiais Militares da Turquia).
Em outubro de 2014 um coletivo designado como DⒶF (Ação Anarquista Revolucionária) se reuniu em solidariedade ao povo curdo e realizou um ato simbólico onde as cercas que separavam Kobane das demais cidades e vilarejos de Rojava foram derrubadas. Em entrevista concedida ao Meydan Newspaper, Abdülmelik Yalcinc descreveu o ato da seguinte forma:

“No momento em que atravessamos a fronteira fomos saudados com grande entusiasmo. Nos vilarejos de fronteira de Kobane, todos, jovens, idosos, estavam nas ruas. As guerrilhas YPG e sua seção feminina YPJ, saudaram nossa eliminação das fronteiras atirando para cima. Nos reunimos nas ruas de Kobane. Mais tarde, conversamos com os habitantes da cidade e com os integrantes das guerrilhas YPG/YPJ que defendem a revolução. É muito importante que as fronteiras entre povos que os Estados ergueram tivessem sido esmagadas daquele modo. Essa ação que aconteceu em condições de guerra nos mostra uma vez mais que levantes e revoluções não podem ser barrados pelas fronteiras entre os Estados.”

Desde o momento em que os membros da DⒶF se manifestaram como membros da insurreição curda, diversos foram os grupos de cunho libertário que aderiram à causa. Atualmente o coletivo com mais referências presente no conflito é o estadunidense Black Rose, porém o front conta com militantes do Sosyal Isyan (Insurreição Social) e do Birleşik Özgürlük Güçleri (Forças Unidas da Liberdade) de origem curdo-turca e com diversos anarquistas de nacionalidades distintas, vindos tanto do oriente próximo quanto do território europeu.
O principal objetivo das forças libertárias que atuam em Kobane é o impedimento do avanço dos jihadistas do Daesh, porém, muitos deles têm atuado na constante reconstrução dos territórios reconquistados após as evasivas islâmicas.
O porta voz do grupo Sosyal Isyan, em entrevista concedida ao portal jyian.org, diz que a atuação dos anarquistas, ambientalistas e vegetarianos, pertencentes ao seu coletivo, junto aos curdos, se dá pela solidariedade internacional e que a ideia é que sejam constituídas Brigadas Internacionais semelhantes as que atuaram na revolução espanhola para que sejam praticados os ideais de Malatesta e Bakunin.
A luta armada não é um dos princípios régios da filosofia política anarquista, como acontece em algumas vertentes do socialismo, porém, devemos entender que o pensamento anarquista é livre de autoridade, logo, pode ser adaptado de diversas formas a qualquer circunstância real seguindo sempre seus quatro princípios fundamentais: a liberdade individual, a autogestão, o internacionalismo e a ação direta.
A resistência aos avanços do Daesh e a solidariedade para a reestruturação do território de Rojava, sem o apoio das Democracias Liberais, visto que a Organização das Nações Unidas pouco tem se mobilizado contra a barbárie promovida pelo Estado Islâmico, nos demonstra a força do constantemente rejeitado pensamento libertário.
Saudações Libertárias!
Kobane Resiste!
*Publicado originalmente no blog Desafinado.