Por Isabela Rodrigues
INTRODUÇÃO
Em suas apresentações relacionadas à questão de gênero, o historiador brasileiro Leandro Karnal sempre utiliza dizer que a sociedade na qual estamos inseridos é falocêntrica, isto porque todo processo de formulação do imaginário ocidental contemporâneo está ligado à noções que nos remontam à antiguidade onde os princípios mitológicos que permeiam os surgimentos estão centrados em figuras que nos remetem ao masculino.
Desde Abraão, passando por Cronos e Príapo, temos nas figuras masculinas as medidas que servem de parâmetro para a constituição dos padrões de vigência em todos os setores da sociedade.
Tomando como base para análise as reflexões de Karl Marx acerca da ideologia, podemos enquadrar a prevalência do masculino como símbolo de poder como um princípio passado de geração a geração e de contexto a contexto de forma inconsciente, onde os indivíduos reproduzem o discurso sem levar em consideração o impacto que este causa na manutenção das estruturas sociais.
Bourdieu classifica essa gama ideológica como a sociedade da dominação masculina. A respeito desta percepção, fica claro que tal dominação não é responsável apenas por influências de caráter estrutural dentro da nossa sociedade, afinal, para além das estruturas, ela influi diretamente na construção das individualidades e, por consequência, contribui para a expansão da violência simbólica.
Nos dedicaremos aqui à análise de um fenômeno contemporâneo que, impulsionado e propiciado pelo movimento feminista gestado desde o século XVIII, é responsável pelo levante de questionamentos acerca da validade da dominação masculina e que, mesmo sem este intuito, serve como objeto de ação contra a manutenção do status quo.
SOCIEDADE EM CHOQUE, EU VIM PRA INCOMODAR
O funk brasileiro surge como um movimento de expressão cultural das periferias no final dos anos 1970 na Zona Sul da capital carioca representado, inicialmente, por homens e trazendo em suas composições uma grande carga de misoginia e objetificação da mulher devido à grande propagação do ideário da dominação masculina nos círculos menos favorecidos da sociedade.
Assim como seu predecessor, o funk estadunidense da década de 1960, o funk brasileiro também traz como uma de suas temáticas principais o sexo. Algo positivo, pois permite um trabalho na direção da quebra de tabus, porém, como já foi expressa, a presença massiva do imaginário masculino nas composições relegava às mulheres um papel subalterno.
A respeito da inferiorização da mulher, podemos considerar que, tal prática está completamente relacionada à noção de ambiguidade estrutural abordada por Bourdieu, onde:
A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e à casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo da vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos (BOURDIEU, 2002, p. 18).
Deste modo, o que temos então é apenas um reforço do caráter dominante do indivíduo masculino dentro deste setor que, mesmo se tratando de um grupo marginalizado, acentua e reproduz ainda mais opressão.
Você não sabe o que eu sofri em casa
Apesar de se tratar de um espaço ainda opressor, o cenário do funk, depois de muita crítica social e do novo levante feminino a partir do início do século XXI, começou a se abrir à atuação das mulheres, não apenas como parte da atração, sendo dançarinas ou animadoras do público, mas “numa vertente mais feminina, com direito a presença de mulheres comandando as pistas, com a temática do cotidiano vivido nas favelas em voga” (VIANA, 2010, 15).
Neste contexto, surgiram os famosos “bondes”, sendo a Gaiola das Popozudas o grupo feminino de funk a atingir uma das maiores repercussões nacionais.
Daí em diante, o número de funkeiras cresce a cada dia e as abordagens do funk feminino se tornam cada vez mais amplas, saindo apenas do cotidiano das favelas.
Uma das principais críticas ao funk feminino na atualidade está relacionada à abordagem que este gênero traz a respeito do corpo, pois o discurso que trazem personalidades como Valesca Popozuda, Mc Carol, Mc Marcelly e Mc Mayara, não segue o padrão preestabelecido pela dominação masculina no qual apenas o homem tem direito sobre seu corpo e, não apenas direito, mas o dever de transmitir sexualidade, pois:
A virilidade, em seu aspecto ético mesmo, isto é, enquanto qualidade do vir, virtus, questão de honra (nif), princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física, através, sobretudo, das provas de potência sexual – defloração da noiva, progenitura masculina abundante, etc – que são aspectos de um homem que seja relmente um homem (BOURDIEU, 2002, p. 20).
Assim, podemos compreender que, a exaltação sexual do masculino é algo que não é apenas permitido, mas necessário para que o indivíduo seja incluso nessa categoria, excluindo, então a mulher enquanto um ser biologicamente dotado de desejos sexuais e colocando-a numa posição de mero instrumento da sexualidade masculina.
Desta visão que aceita e reproduz a dominação masculina, parte, então, o espanto e o asco ao se deparar com o grito de liberdade sexual presente em composições como “quero te dar” ou “agora eu tô solteira”.
Como indicado no título deste subitem, o funk feminino, apesar de estar estreitamente ligado à libertação sexual das mulheres, não se atem apenas a este anseio, pois é também um objeto de denúncia da violência a qual as mulheres são submetidas diariamente, principalmente nas periferias.
O que devemos deixar claro, no entanto, é o fato de que mesmo havendo este compromisso com a libertação feminina, esta expressão ainda traz marcas profundas deixadas pelo imaginário da dominação masculina, tais como a competitividade entre as mulheres e a exaltação da figura masculina.
Ainda através de Bourdieu podemos dizer que todas as práticas que contribuem para a manutenção da sociedade permeada pela dominação masculina se relacionam com as noções de poder e violência simbólicos.
Podemos compreender por poder simbólico, algo bem próximo ao conceito de ideologia que encontramos em Marx, pois, para Bourdieu (1989, p. 7) “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”.
Além da dominação masculina, podemos tomar como representantes do poder simbólico em nossa sociedade a estratificação social que é abordada e aceita como algo natural, pois foi inicialmente reproduzida como algo necessário para a manutenção de uma ordem metafisicamente estabelecida.
Sendo assim, para que haja a desconstrução da sociedade de dominação masculina, existe a necessidade de uma tomada paulatina de consciência acerca dessa relação de poder que é aceita e transmitida entre os pares de forma desapercebida, medida esta dificultada pela existência de outro fator diretamente ligado à adesão dos dominados ao discurso dominante.
Nesse sentido, as mulheres podem ser representadas, então, como vítimas da violência simbólica, pois são impelidas a aderirem e reproduzirem a dominação masculina através de diversos fatores exteriores que permeiam suas existências, afinal, como sabemos, todas as produções humanas são passíveis da transmissão do discurso do poder.
CONCLUSÃO
O funk feminino, então, apesar de ser uma forte arma de resistência à sociedade de dominação masculina, ainda sofre rejeição porque este ideário está demasiadamente arraigado na sociedade.
Podemos entender, no entanto, que a presença e o protagonismo das mulheres dentro de um cenário triplamente desfavorecido, já que além da condição de mulher, são, na maioria das vezes, negras e periféricas, já é um grande empoderamento em meio a tanta opressão.
Através dos conceitos trabalhados, vimos que para que geremos um cenário mais favorável para o desenvolvimento saudável da humanidade, dependemos de diversas mudanças estruturais na sociedade, além da adesão de praticas de ação transformadora como a que promovem as mc’s.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989.
VIANA. L. R. O funk no Brasil: música desimtermediada na cibercultura. Sonora – UNICAMP, vol. 3, nº 5, 2010, p. 3-24.